
Eu sou daquelas pessoas urbanas fáceis de serem apontadas como pedantes pelos que, sendo igualmente intrínsecos citadinos, gostam de apregoar as maravilhas do exótico mundo rural ao mesmo tempo que me desancam pela minha assumida aversão à vida campestre. Contrariamente aos amigos burgueses de séculos passados cujo enriquecimento veloz se ficou a dever a uma conjugação de chica-espertice com desenrascanço e exploração de fragilidades económicas alheias, eu não vim de longe para aqui, não me quero afirmar pela anulação de qualquer passado camponês e só sei que um frango não nasceu embalado porque nasci em 1976 quando eles ainda viviam em quintais, nomeadamente nos dos meus avós. Eu sempre estive aqui. No meio da poluição e entre prédios.
Para escândalo de muitos, eu sou pessoa para gritar perante uma lagarta numa couve, chegando mesmo a ponderar enviar uma reclamação por email para a cadeia alimentar, vulgo hipermercado, onde adquiri o produto adulterado, ameaçando uma queixa para a ASAE perante tal vitupério e ponderando exigir uma indemnização perante danos emocionais. O tempo perdido a posteriori, ninguém calcula. Como tirar uma lagarta de uma couve, ou melhor, como tirar uma couve de uma lagarta?
Não estando familiarizada com seres vivos mais pequenos que o meu gato também não sou pessoa para esborrachar uma lagarta. Infelizmente na escola nunca nos ensinaram qual o melhor modo para retirar moluscos de leguminosas. Demoro 10 a 15 minutos: primeiro com um cotonete em sequências de tentativas para que o bicho se enrole no mesmo; segue-se a transferência do animal para um jornal, tarefa simultânea com o mantra “não te mexas, não te mexas, não te mexas” e finalmente o lançamento do bicho pela janela, missão ultra sensível, pois faço pontaria ao relvado, tentando que o arremesso o salve de um embate com a calçada.
Infortúnios domésticos à parte, também não tenho aspirações de morar numa vivenda, nem geminada, nem sozinha. Para indignação de muitos considero francamente provinciano o facto de me deslocar para trás do sol-posto (visto que o nosso ordenamento territorial, ao contrário dos americanos do norte remete os subúrbios para trás dos prédios, entenda-se, muito para lá da periferia de qualquer pequena cidade). São conjuntos de vivendas e vivendinhas, feias, sozinhas e incrustadas noutras, sem nada por perto, por “nada”, entenda-se nada de significante; coisas como um cafezinho, uma padaria, um quiosque, uma paragem de autocarro, outras pessoas, pessoas, mais pessoas e confusão, barulhos de pessoas, de carros, de autocarros, poluição, vendedores de castanhas, lojas dos chineses, lojas que não dos chineses, restaurantes e coisas assim que fazem confusão às pessoas que preferem o campo. Geralmente aspiram morar em sítios que de campestre têm muito pouco. Só fazem lembrar. Sítios com nomes estranhos agora, mas que dantes até tinham sentido, um sentido perdido perante a humanização da paisagem e que, descontextualizados, parecem apenas ridículos, tipo Malveira da Serra ou Quinta do Conde. Mais artificial ainda são os sítios que não existiam e de onde emergiram construções novas a apelar a essa, aparente, necessidade de reencontro com o camponês que há dentro de alguns de nós, do género “urbanização jardim das flores” (a iteração, note-se, vinca mesmo a ideia: é um jardim e ainda por cima tem flores- que hoje esta história de ter jardim já não é garante de nada) ou “urbanização vale paraíso” (repare-se - é num vale, logo afastado da confusão, mas também é paraíso, logo um vale descansado - também poderia ser boa designação para uma casa mortuária, mas pronto, a intenção urbanística está lá).
È que longe da segurança da cidade existe um mundo vil e perigoso, povoado de pequenos seres, nomeadamente insectos e roedores, cheiros e cores, com o qual o meu código genético já não é capaz de lidar. Há dias, por exemplo, eu estava no meio dos prédios, só betão e calçada e umas árvores esquálidas a 100 metros, entro no meu carro, fecho a porta e, na parte de fora do vidro do condutor, está um gafanhoto gigante (só podia, tinha um palmo de comprimento, desde a enorme cabeçorra até àquela espécie de casulo que é o corpo). Algo no meu cérebro demorou a ler o que era aquilo, juro. Pensando bem, só reconheci que era um gafanhoto porque me fez lembrar o Flip (da Abelha Maia, mas sem o chapéu, daí a dúvida). Eu gritei. Gritei de susto. Só pensava como é que um bicho daqueles estava ali, na segurança do betão e da falta de coisas verdes?! Deixei-o lá: tive de sair pela porta do pendura porque o bicho aguentou 5 quilómetros de viagem com umas ventosas poderosíssimas que tem nas patas, quanto mais depressa eu ia, mais o bicho aerodinâmico se colava ao vidro. Terror puro, esses minutos que vivi.
Só eu sei o que sofro quando visito a tia do homem de trinta anos na santa terra e ela nos abre a porta do quarto onde vamos ficar e eu já sei que passarei as próximas duas horas a matar aranhas, enquanto grito de cada vez que me deparo com uma, o coração aos saltos e uma urticária nervosa; nem vale a pena mudar de quarto, pois estão em todo o lado. Como eu durmo mal nesses dias, acometida de pensamentos torturantes sobre possibilidades, bastantes plausíveis, de me entrar uma aranha pela boca durante o sono. E os ratos? Ah, pois é. Há ratos nas adegas e garagens das pobres casas desprotegidas que se situam longe das cidades. Muitas vezes estão espremidos numa ratoeira artesanal, sequinhos da silva, cheios de formigas e outros bichos em redor, mas atrás desses mortos em combate, imagino sempre os outros escondidos a aguardarem a minha passagem para se atirarem a uma perna. E os rituais do campo? Eu juro que os percebo, por Claude Lévi-Strauss, eu juro que os percebo! Numa perspectiva etnográfica eu gosto muito, sim, senhor, mas agora que nunca mais se repita o episódio em que a prima da terra me recebe com um facalhão na mão, mangas arregaçadas e braços ensanguentados e me pergunta se a quero ajudar a “desmanchar” um porco! Eu tiro fotografias, até posso tirar notas, mas não faço trabalho participante em matanças de porco. Jamais! É mais forte do que eu.
Depois ninguém percebe porque pretiro a bucólica paisagem campestre à cidade! Coisas como é “um sossego” são para mim sinónimo de “é um degredo”; “é um espaço só nosso” interpreto como “somos uns selvagens barulhentos, não nos aceitam num condomínio e aqui podemos “ajavardar” à vontade que ninguém nos vê, nem ouve”; “quando tivermos crianças têm mais espaço para brincar” é uma expressão dúbia, ao que contraponho “vão brincar com quem? Como? Vão ficar tontas de andar de triciclo às voltas num instante nesse vosso micro jardim! Prefiro o parque infantil da comissão de moradores que existe nas traseiras da minha rua!”. Depois a pérola “há muito mais qualidade de vida”. “A fazer o quê?” Esta da qualidade de vida é prepotência pura e pode dar para tudo. Plantam o que comem? Não. Consomem menos energia? Não. Deslocam-se de carro 10 a 20 quilómetros para o hipermercado mais próximo para fazer o mesmo que eu faço sem gastar tanta gasolina. Têm melhor ar? Ainda bem porque entretanto para saírem dali para qualquer espaço civilizado levam o carro atrás e poluem o espaço dos outros, atravancando a rua da cidade de que fogem com mega carrinhas suburbanas, grandes e mal estacionadas, aquelas que depois, aos dias de semana, fazem fila na ponte para chegar a Lisboa, pois moram tão longe, mas tão longe, que nem o comboio lá passa.
Auto excluídos, portanto. Os novos rostos da exclusão: os alambazões suburbanos. E depois encontram uma pessoa na rua e tratam-na como uma pobrezinha porque vive na cidade, ansiosos por contar a sua socialmente prestigiante mudança de residência de Corroios para Azeitão! Como se isso me fizesse diferença. A mim. Logo a mim. Azeitão?! For god sake! Depois sou esquisita! Pois sou.