A mulher de 30 anos não era nascida no 25 de Abril de 74; não ouviu radionovelas e não vibrou com o Festival da Canção. A mulher de 30 anos tropeçou em dois séculos e está aqui! Também opina, ainda não é anciã e agora é mãe
Eu sei, eu sei, já não há pachorra. Para qualquer lado, televisivamente falando, que uma pessoa se vire parece lá estar omnipresente a Sílvia Alberto, melga e feliz da vida, a apresentar vezes sem conta as canções festivaleiras desde o século passado, ano por ano, canção por canção, vira o disco e literalmente toca o mesmo.
Eu até gosto da "Desfolhada". Tem um poema do Ary dos Santos. Eu acho piada à história da "Tourada" cantada pelo Fernando Tordo quando era giro. Eu até acho piada a esse, hoje elevado a, ícone pop que graça por José Cid e àquela canção que reptia o amor em línguas estrangeiras. E claro, também considero que o "E Depois do Adeus" para além de bonita é muito simbólica e isso tudo. Mas, por favor, parem lá com os concursos para eleger a melhor canção de sempre de um festival que já morreu! A seguir a isso vem o quê? A eleição do melhor episódio do "Dallas"?! E depois? Passamos três anos com a Sílvia Alberto a apresentar cada um deles? E o pessoal em casa a votar?!
Bem, isto tudo para dizer que nas minhas andanças laborais por, longos e tortuosos caminhos, andei a dar uma de etnomusicóloga e a descobrir uma a uma... não, não foram as canções do Festival!
Para quem não sabe houve um músico, compositor, maestro, professor, musicólogo (pois, a área não é só lobby do maestro amigo da Bárbara Guimarães) que, fascinado e inspirado pelo Béla Bártok, deixou um vasto legado ao panorama musical português. E mais, na língua universal que adoptou, das suas composições resultaram, não só trechos para quem já carregava uma educação/erudição musical, mas sobretudo a composição musical de canções populares (como o "milho verde") passíveis de serem tocadas e cantadas por qualquer orfeão de qualquer colectividade por mais recôndita e amadora que fosse. O seu conjunto inicial designava-se de "Canções Regionais Portuguesas".
Fernando Lopes Graça (n. 1906;m.1994) foi fundador do Coro de Amadores de Música de Lisboa e não teve uma vida fácil durante o Estado Novo, o que (a atentar na temporalidade da sua vida) lhe cerceou projectos, profissão e intimidade.
Ora as "canções heróicas" nascem da adversidade e emergem como projecto nessa relação estreita que a música e a literatura possuem quando se tenta exprimir ideias, afirmar ideologias, instruir e alargar horizontes. Num período em que a resistência ao regime salazarista se fazia de modo mais directo, mais indirecto, mais na sombra, no exílio ou totalmente na clandestinidade, Lopes Graça fê-lo através da música. E isso também não o livrou da prisão.
Como para os regimes autoritários os livros e a música (agora a internet também) costumam ser um alvo prioritário a abater e esta ideia, só por si, é fascinante: os livros e a música terem poder de implodir as ideias que neles estão contidos, estas "canções" que vos falo nunca viram em todo o seu esplendor a luz do dia, através de uma edição maior ou passagem na rádio ou na tv, até 1974. Contudo, tornaram-se um símbolo da mobilização em torno de uma ideia unitária de oposição política; no fundo são canções da resistência.
Assim existem, pelo menos, 11 canções incontornáveis (eu comecei a debruçar-me melhor sobre isto há pouco, ainda me faltam ouvir umas quantas e ler mais coisinhas) com excelentes poemas da crème de la crème da nossa literatura na esteira neo-realista do Fernando Namora: desde o José Gomes Ferreira a Carlos de Oliveira ou a José João Cochofel, entre outros.
Deixo-vos as letras de duas... e se quiserem mais vão ouvir as "Canções" ou lerem os livros...
Livre (Carlos de Oliveira)
Não há machado que corte a raíz ao pensamento não há morte para o vento não há morte
Se ao morrer o coração morresse a luz que lhe é querida sem razão seria a vida sem razão
Nada apaga a luz que vive num amor num pensamento porque é livre como o vento porque é livre
Acordai (José Gomes Ferreira)
Acordai acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis vinde no clamor das almas viris arrancar a flor que dorme na raíz
Acordai acordai raios e tufões que dormis no ar e nas multidões vinde incendiar de astros e canções as pedras do mar o mundo e os corações
Acordai acendei de almas e de sóis este mar sem cais nem luz de faróis e acordai depois das lutas finais os nossos heróis que dormem nos covais Acordai!