Quem, como eu, está com os pés em Portugal continental e vê aquela recepção popular ao presidente em terras madeirenses, até fica um bocado incrédulo.
*
Está bem que a Madeira é uma ilha e, a bem dizer, não se passa lá grande coisa, mas tanta gente na rua a ovacionar?! No fim, não fora a sua receita interessante ao nível do turismo, funcionaria para nós, continentais, como uma ilha imaginária, porque longínqua, condensada num habitante e reflectida a partir dele enquanto reflexo da sua localização insular. E funciona. É quase como um cartoon, de vez em quando lá aparece a ilha na televisão graças à estratégia de marketing, popular e política, do seu personagem mais forte. Tirando as grandes reportagens sobre o fogo de artifício da passagem de ano, o Carnaval, as redes internacionais de pedofilia, Câmara de Lobos ou como-se-vive-no-limiar-da-pobreza-em-território-nacional, aquilo é um deserto de acontecimentos ou eventos marcantes.
E pronto, a população insular fica contente por um chefe de Estado se deslocar à ilha, é simbólico. Simbólico de que não está esquecida, apesar de no meio do Oceano; simbólico do apoio político nacional ao seu líder eleito; simbólico do reconhecimento da identidade madeirense no contexto nacional e afins. E estão todos contentes! E calados, os que não partilham da efusiva celebração, pois a pequenez (em todos os sentidos) da aldeia insular é pouco permissiva a ideias “da reacção” como o personagem chefe já advertiu.
Agora poderíamos fazer uma pausa e visualizar o casal presidencial a dar um pezinho de dança, vestido a rigor, ao som do grupo de folclore da Camacha…
Também poderia dissertar um pouquito sobre a distância, a angústia ou o abandono como características determinantes da condição de ilhéu e explicar as multidões contentes dos últimos dias.
Até ficaria bem referenciar alguns trabalhos académicos sobre o tema; relembrar a marginalidade dos primeiros grupos de habitantes, expulsos do continente e embarcados à força, rumo à ilha ou a luta de gabinete centenária, na prática vivida pelos autóctones divididos entre economias inglesas e portuguesas, sem saber muito bem quem mandava, mas tendo a certeza que eles não eram, e permear a coisa com um apontamento à série televisiva da rtp1 que se chamava “Xailes Negros” e da qual só me recordo de uma moçoila, vestida de negro, mas não gótica, habitante paupérrima de uns Açores de meados do século XX, cristalizados numa economia frágil e governo hermético, igualmente sufocado pela Constituição de 1933, que transportavam os seus habitantes para um tipo de vida a lembrar a Idade Média… Mas lembro-me da moçoila, na série, pobre, andrajosa, desesperada e claustrofóbica, a melgar um continental e a repetir arrebatadamente “leva-me pró contenente…” como se disso dependesse a sua sobrevivência (que a viver daquele modo, dependia mesmo) e isso é que ajuda a entender muita coisa.
Ora é na condição do ilhéu, no contexto sócio-histórico da ilha onde se insere e na relação estabelecida com o espaço de referência (económico, social, político, identitário, cultural) que somos obrigados a reconhecer a importância da
distância na construção de uma identidade própria, entre a referência e a oposição, na sua essência antropológica do “somos assim porque eles são assado”. Nesta
bricolage levistraussiana onde assenta, se partilha e se transmite a identidade cultural, o sistema madeirense, muito singularmente, aprendeu a viver e a reconstruir-se ao longo da sua história da mesma forma que outros sistemas, mas mais entregue a si próprio e sempre na dependência do “outro”: no exacerbamento das diferenças, com uma leitura própria das semelhanças, achando-se hoje a escolher implicitamente uma identidade por oposição, tão mais vincada quanto personificada num porta-voz que acumula outras funções sócio-culturais: é pai de todos, patrão de quase todos, líder da maioria e guia espiritual para qualquer ocasião.
Levando-se a análise de forma mais aberta até se pode constatar o exotismo português de integrar, e, aparentemente, de forma tão confortável, no seu sistema democrático, um exemplar do típico populismo sul-americano em espaço europeu. Podia ser pior e acontecer-nos como aos italianos que até preferiram o populismo para governo do país...
Os ilhéus portugueses na Madeira reflectem a construção identitária hiperbolizada numa oposição manipulada que o pai lhes foi ensinando e que lhes confere o título de grupo mais idiossincrático que eu alguma vez conheci. Ah, isto porque, metade da família do homem-de-trinta-anos é de lá, o que, friamente, dá um tubo de ensaio maravilhoso para corroborar o que vos digo: a metade de cá ficou órfã de livre vontade e é moderada; a de lá, cristalizou e reproduz o discurso paterno tipo pescada de rabo na boca.
Assim, para os meus familiares de empréstimo de lá, os portugueses do continente são “cubanos”, todos “vermelhos”, uma rebaldaria… Os portugueses do continente vivem melhor, pois há mais saídas profissionais, universidades e postos de emprego (até aqui até se percebe e estamos de acordo). Agora, afirmarem-me que eu vivo melhor porque tenho mais centros comerciais à mão de semear enquanto que eles estão condicionados ao shoping do Funchal, pequeno e com pouca variedade, já é um pouco forçado. Em comparação com o continente, para os primos de lá, a Madeira é mais “evoluída” graças à excelência do governo regional (pois, que os fundos comunitários nunca vêm ao caso): tem uma auto-estrada e inúmeras vias rápidas, uma catrefada de túneis e com orgulho afirmam que se pode dar, em três horas, a volta à ilha, por estrada, culminando com a retórica pergunta: “Lá não têm vocês obras de engenharia destas, ah?!” Ok. Desculpem lá, a morfologia do território continental não necessitar de 500 túneis e não conseguirmos dar a volta ao país em três horas… Para eles, os portugueses continentais não querem saber dos portugueses das ilhas, mas afirmam estar à vontade com isso porque o “turismo é o nosso motor e não precisamos do vosso governo para nada.” Antão? O “nosso” governo?! Também é o vosso; também estão contemplados no orçamento de Estado, não? Depois, a coisa culmina, com um primo enfurecido, a afirmar o prestígio e condução inequívoca dos destinos madeirenses nos ombros de um homem só: “Tomara ao continente ter um Alberto no governo ” (!).
Mas depois surge a última das contradições: são adeptos fervorosos do Benfica e do Porto, principalmente, quando têm o Marítimo ali mesmo à mão; adoram relembrar as suas origens britânicas, algarvias e alentejanas, desencantando vocábulos em uso transmudado e identificando-os com regiões do continente; evidenciam as belezas naturais do continente e adoram relembrar a mítica história do outro primo ilhéu que se perdeu na A2 (Lisboa-Algarve) ali para os lados do Alentejo e que justificava assim o acontecido: “Ué, vocês no contenente têm estradas mesmo grandes!”. Nesta fase cool de harmonia familiar em que uma pessoa já quase que se esqueceu da ruptura cultural provocada pela conversa dos túneis servem-nos umas exóticas lapas gigantes para atirar logo a seguir, enquanto chupamos o molho de limão das ditas e já arrebatados novamente pelo calor humano madeirense, “ahhh?! É bom, não é?! Melhor que os vossos caracóis! Aproveitem que disto não têm lá vocês!”.
Daí que sinta retornar a sensação de claustrofobia, que me atacou durante a estadia prolongada na ilha há uns anos atrás, quando vejo as imagens do povo ilhéu a receber o presidente do contenente. Nem uma manifestação. Nem um cartaz com uma reivindicação, aproveitando o momento mediático. Nada. Tudo contente, bem vestido e a bater palminhas. Esse é o momento em que sobressai daquele colectivo madeirense a mais perniciosa característica do tuga em geral, a orfandade latente, a inoperância infantilista e a necessidade extrema de ter um patriarca, alguém que nos guie. Somos nós, aquele carro animado e o Marco e seu macaquinho, não sabemos ser sem ser mandados e andamos sempre à procura de um progenitor. Isto é perigoso porque dá coisas parvas do género sermos propensos a eleger pais ditadores, mas não aprendemos.
Relativizando estas coisas, enquanto lá estive constatei que eles, realmente, podem dar a volta à ilha numa tarde. Mercê da sua geografia, vão de férias para os destinos mais acessíveis: Porto Santo (e encontram lá toda a gente, tipo praia da Costa de Caparica) ou então para as Canárias; Portugal é caro, o resto da Europa ainda mais caro. E como eu pensava, uma semana após ter lá aterrado, que ou me ia embora ou me passava com tão pouco espaço físico e social, deixa-os lá viverem cegamente esse momento áureo das suas vidas que é a visita presidencial.
Viver numa ilha, creio eu, é viver condicionado e eu sentia isso muito a sério enquanto estive por lá, sei lá porquê, e queixava-me recorrentemente ao homem-de-trinta-anos que, por seu lado, já não me podia ouvir lamuriar com a constatação de que a ilha era uma ilha e me provocava falta de ar: “Ai que já dei a volta à ilha, já subi, já vimos a floresta Laurissilva, já descemos ao Curral das Freiras e tornámos a subir até ao Paul da serra, agora de teleférico do Funchal lá acima, já fizemos a estradinha para São Vicente e fomos ás piscinas naturais, já percorremos a pé o Funchal, os sítios estão a esgotar-se e já há só água à volta. Olha ali água e ali e dali também. Ai, socorro! Isto é uma ilha. Se pegarmos no carro vamos dar a algum lado conhecido, que partir sem destino numa ilha é um bocado difícil, ai que sufoco, ai que sufoco, leva-me pró contenente… por favor, leva-me pró contenente!”.
____________________________________________________________________
Então?! O que é que se passa?!
Não é que reparei agora que desapareceram do cabeçalho as minhas duas irmãs gémeas?
Eu não fiz nada. Simplesmente desapareceram. Será do sapo que anda parvo?
Isto não se percebe!
Tenho lá eu tempo para me chatear com isto? A minha vida não é isto! Uma pessoa tem mais que fazer!
Olha, mudei o título para a direita e desisti de procurar as duas moçoilas que faziam pendant com a que foi poupada!
Agora não gosto! Uma pessoa já estava habituada!
E não é que não as consigo restituir?!
Fica assim.