Eis duas palavras que não se conjugam lá muito bem. Uma pessoa até está contente; aliás muito contente, mas nada vence as vias respiratórias obstipadas; a dor de cabeça, a sensação duradoura de nariz entupido ou a tosse cavernosa consequente.
Por muito contente que uma pessoa esteja não há energia para comemoração ou exteriorização da dita. Estou farta dos lenços de papel e das gotas para o nariz. Quero a minha saúde de volta!
Mas que estou contente estou.
Estou aliás muito contente.
Agora as razões do meu contentamento estão em proporcional relação com a mediocridade do país que temos. Por isso também devem ser medíocres. Contudo, como vivo aqui sou uma idiota poucochinha como o meu país, vou enumerá-las só para que vejam como nós, portugueses, somos mesmo pouco ambiciosos (tal como o país):
Estou contente porque:
- finalmente tenho um emprego para o qual os meus looongos anos de estudo até importaram, ou seja, estou numa área que tem mais ou menos a ver (polivalência, século XXI, choque tecnológico e outros);
- estou constipada. E sempre que estou doente ponho-me a pensar em como deve ser tão difícil a vida das pessoas que estão sempre doentes; aí sinto-me uma sortuda e prometo a mim própria que, quando me sentir em condições, vou aproveitar a minha saúde ao máximo;
- estou contente por comparação (aqui entra a intrínseca característica da inveja ou fatalismo português) porque vi numa reportagem televisiva uma corajosa senhora que trabalha numa indústria têxtil a carpir a sua desdita profissional e o facto do ordenado mínimo nacional não aumentar ainda este ano para atingir aquela meta progressivamente (eles enganam-nos e a gente chora a nossa sorte) dos 450euros. Acaba ela a sua intervenção dizendo uma coisa deste género: “Aiii! Os quinhentos eurinhos é que era! O desafogada que ficava se chegasse aos 500 euros!”. Aí uma pessoa pensa que tem realmente sorte (não se comparada com um luxemburguês por exemplo, mas pronto); mas, por outro lado, constata que vive num país tão merdoso que nem incentivo ao trabalho sabe dar. È que eu se ganhasse o ordenado mínimo a trabalhar das 8horas da manhã às 5 da tarde ficava era em casa a arranjar estratégias para “papar” os míseros 300 euros ao Estado que, entre rendimento mínimo, complemento social solidário e outros afins até devia dar mais. Mas não, as pessoas ainda teimam em trabalhar e depois toma lá com estes trocos, vai pagar a renda, luz, água e comida, o passe e põe os filhos na escola, compra-lhes roupa e não digas que vens daqui.
- Estou contente porque faço parte duma elite que foi à escola e não sofre de iliteracia e não está sujeita às arbitrariedades mais bárbaras que atentem contra os seus direitos porque tem consciência deles e sabe que os pode reivindicar. Um exemplo: há pessoas hoje que pensam que não têm direito a receber os dias que têm de férias porque o patrão lhes disse: “Onde é que já se viu receber quando não se trabalha? Acha que tem sentido? Pois não, os dias de férias não são pagos nem podiam nunca ser e isso do subsídio de férias não se aplica ao tipo de trabalho que faz.” E toma. Então a pobre alma responde: “Ah, então não, não posso ficar sem receber, tenho uma mãe doente, os meus filhos estão na escola e o meu marido desempregado. Não quero ter férias.” Responde o trafulha: “Faz bem, eu no seu lugar também não queria, é que assim tem sempre o ordenado e já sabe com o que conta.” Isto é verdade e acontece porque me contou a pobre alma ludibriada. Agora são estes trafulhas que ficam apoplécticos quando o Estado lhes diz que até 2011 o ordenado mínimo chegará aos 450 euros!
Vistas as coisas assim e numa escala de mediocridade absoluta, na individualidade da minha vida pessoal, até estou contente. Agora isto é sol de pouca dura e esbatece por completo mal acendo a televisão ou leio o jornal ou falo com pessoas reais que são a maioria dos cidadãos deste país e que parece que têm ainda um “Salazar” dentro de si. Têm medo de questionar porque tudo lhes parece inquestionável e aceitam, e choram, e reclamam e remoem e não fazem nada. Merecem o país que têm porque incapazes de o mudar. Nem pedir o livro amarelo ou o de reclamações ou ir ao tribunal do trabalho. Nada. Têm medo. Não sabem ser cidadãos, não foram educados para isso. Os portugueses não reclamam, remoem. Os “outros”, o “governo”, “eles” é que nos estragam a vida. Não, quem estraga a vida aos portugueses são os próprios portugueses. Foram eles que votaram, é a eles que o governo serve. Os cidadãos são a parte forte do Estado; o governo sem cidadãos não existia. Por isso, acordem. Se a vida vai mal, associem-se, reivindiquem, façam-se ouvir.
Já não há pachorra para lamúrias quando isto vai de mal a pior e uma pessoa fica feliz só por ter um emprego, isto é, só por a deixarem trabalhar.