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Ainda ontem estava em Marrocos/
E agora já estou cá...
Pois. Foi bom, foi. Agora estou numa fase de auto comiseração pós-férias.
E agora o que já lá vai... as férias!
Pensámos nós e pensaram todos os imigrantes marroquinos na Europa atravessar o estreito de Gibraltar numa 2ª feira ao fim do dia. Resultado: 5 horas de espera para entrar num ferry já atrasado devido à constante chegada de mais imigrantes que turistas. A agravante é que na travessia entre Algeciras, em Espanha, e Tanger, já em Marrocos, existem menos barcos do que via Ceuta.
Chegámos à mítica cidade de Tanger às 3h30m da manhã. Meia hora para mostrar passaportes e dez minutos de "penalização", pois recusámos dar dinheiro ao funcionário público da fronteira para nos despachar rápido. Primeira constatação que sim, chegámos a Marrocos: os funcionários públicos identificados não têm qualquer pejo em te pedir dinheiro para trabalharem, apesar do Estado já lhes pagar ordenado. Serve euros ou dirhams. Não levou nada que já da outra vez tínhamos passado pelo mesmo e não acho piada nenhuma. Ficou amuado. Fez-nos esperar. Eu tinha fome, sono e comichões provocadas pela poeira de um dia inteiro a andar de mota e quando estou assim não aturo amuos. Fui exigir os nossos papéis ao polícia. Depois foi rápido.
Encontrar um hotel com menos de 4 estrelas em Tanger é difícil. Mais ainda de madrugada.
Primeira decepção. Eu a achar que aquilo era o paraíso na terra e as casinhas todas
iguais à do Paul Bowles e afinal é uma pequenina Quarteira com uma muralha-fortaleza e
canhões portugueses a apontar para o Mediterrâneo. Àquela hora da manhã passámos por três discotecas e de hotel baratinho, nada. Tivemos de gastar uma autêntica fortuna para os
padrões marroquinos (e os nossos) e despender quase 500 dirhams (50 euros) num hotel
ocidental com ambientador e uma super casa de banho. Fomos embora no dia seguinte.
Rumámos a Al-Jadida, mas só conseguimos chegar a Kénitra. Durante o trajecto ainda nos
conseguimos perder no acesso à AE e andámos 4 horas à deriva por uma estrada nacional, mas muito secundária. Apesar do cansaço, valeu a pena. Passámos por plantações de erva e de bananas; parámos a ver o souk mais medieval que eu algum dia havia visto: umas
construções de alvenaria, no meio do nada, abertas para a estrada e onde se mistura
comércio e outros serviços variados tal como um dentista ao lado de uma loja de carnes
(com as pernas de vaca e as cabeças de borrego dependuradas ao sol) seguida de uma banca de peixe, mais uma espécie de drogaria, mais a parte da venda de gado e galináceos vivos, mais um comerciante de artefactos em barro e alguidares, mais umas bancas de especiarias variadas e outras de fruta e várias esplanadas onde se bebia chá e cafe aux lait. O chão de areia batida, o cheiro da ausência de salubridade e o amontoado de gente que, no meio do nada, vimos a andar em direcção a esse centro comercial ao ar livre fizeram-nos crer que estávamos longe como tudo da AE e de qualquer cidade maior. E não nos enganámos.
Passámos por uma pequena aldeia onde a única construção de pedra e cal era a boutique com a placa esbatida da... coca-cola; o resto eram habitações do tipo palhotas com telhados de colmo e folhas e paredes de madeira, redondas e todas iguais. As mulheres estavam a
estender roupa numa espécie de estendal comunal e acenaram; as crianças vieram a correr ao pé da estrada. Aproveitámos para pedir indicações sobre uma cidadezinha que sabíamos ser perto de uma entrada para a famigerada auto estrada, mas esquecemo-nos que, pois... claro... não falavam francês ali... nem espanhol... nem inglês. Como não falamos árabe a
conversa decorreu connosco de mapa aberto repetindo o nome da cidade "Nador" e fazendo
gestos de querer lá chegar ainda nesse dia e o senhor marroquino a rir-se para nós e a
falar fluentemente a sua língua como se nós o percebêssemos. Finalmente desenhou na
areia. Momento comovente esse em que se descobrem outros modos de comunicar para além da
língua e que nos fazem sentir um pouco menos estrangeiros. O desenho parecia estar
explícito e os gestos também. Nós percebemos que mais à frente devia haver um cruzamento
com uma estrada e nós viraríamos à direita. Nunca vimos o cruzamento; mas em compensação
vimos micro mesquitas, tão pequeninas que poderiam estar representadas numa parte do
"Portugal do Pequenitos" dedicada a outros países; vimos burros anões tão carregados que
pareciam só ter cabeça, clássicos da Fiat adaptados a carros de trabalho com mais da
minha idade e palmeries de fazer inveja à de Marraquexe (Palmerie é o que designa uma
extensa plantação ou jardim de palmeiras). Ao fim do dia, sem almoçar, avistámos a
primeira placa bilingue com indicação de Rabat. Uma alegria. Chegámos a Kénitra e no
primeiro golpe de sorte das férias conseguimos chegar ao centro da cidade sem nos
enganarmos. Ficámos no primeiro hotel que do topo da mota avistei, gritando desesperada
"é um hotel, pára! Pára é um hotellll!". Esse belo exemplar arquitectónico de uma época
colonial passada: o Hotel du Commerce. Ficámos por lá a descansar 2 dias.
Finalmente ao 4ª dia chegámos a Al-Jadida, uma das primeiras fortalezas portuguesas no
norte de África, classificada como Património da Humanidade devido à antiga "cidade
portuguesa" preservada no interior do forte onde ainda existe a cisterna que abastecia a
vila e arredores. As ruas ainda têm topónimos portugueses. Um simpático autóctone
perguntou-nos se vínhamos em busca de reminiscências do império português. Respondemos
que não, que íamos era à praia. Ficou mais tranquilo, pois considera que tanto turismo em
torno da "cité portugaise" é injusto, visto que os nossos antepassados destruíram toda a
cidade quando debandaram em retirada, deixando-lhes a trefa da reconstrução. Respondi-lhe
que os árabes uns séculos antes tinham raptado as crianças das principais vilas
conquistadas pelo Afonso Henriques, mas, de qualquer modo, pedimos-lhe desculpa pelo
estrago. Ele riu-se, com aquele ar que só os marroquinos têm quando se riem (um certo ar
infantil que a ausência de dentes provoca misturado com um olhar de genuíno interesse
pelos interlocutores que resulta numa empatia imediata).
Interior da antiga cité portugaise, muralhada e virada para o Atlântico
(a cisterna tuga, agora musealizada)
(parte nova da cidade, fora da fortaleza)
Rumámos em direcção a sul, sempre pela costa atlântica. Parámos em Casablanca para
visitar uma das duas únicas mesquitas passíveis de visita pelos não muçulmanos (a outra
é em Rabat, a capital, junto ao mausoléu do anterior rei). Chegámos às 12h. Tinha acabado
de fechar para almoço. Estava um sol desértico, seco e baixinho. Só abria às 15h.
Decidimos ir embora. Passeámos pela cidade, observámos o trânsito caótico e a mistura de veículos e pessoas enquanto bebíamos um chá de menta tradicional num dos souks da parte antiga e constatávamos que, pois, devia ser mesmo a maior cidade do país. Partimos.
(a mesquita)
Ainda ponderámos descer mais a costa e ir até Safi e daí a Eassaouira, mas realistas
sobre as nossas mazelas físicas e o desgaste grande que já acumulávamos rumámos ao
interior, à cidade de Meknes (a 40 km de Fez que já conhecíamos). 43 graus às 11 da
manhã. Senti-me um pardalito a morrer lentamente de desidratação. Andava sempre com a
boquinha entreaberta, um lencinho de papel para limpar a transpiração(!) e uma garrafinha
de água Sidi-Ali. Usámos poros da nossa derme nunca antes utilizados e conhecemos o
Sidmou, hip hoper muito cool, dono do Hotel onde ficámos, o Regina.
(a praça central de Meknes e eu a passear no souk dando uma de emplastro para a foto)
Três dias em Meknes com direito a cybercafé ao lado do hotel e a 2 minutos a pé da Praça
Central, perto do antigo palácio imperial. Como é da praxe perdemo-nos na labiríntica
medina onde às ruas identificadas por classe profissional, depressa se seguiam, as de
habitação, entrecortadas com comércio. O nosso mapa mental não está habituado a uma
organização espacial onde está ausente um centro e, por isso, não distingue periferias;
de modo que ao entramos por uma rua da Praça Central fomos sair no extremo oposto e
virados para a parte nova da cidade depois de duas horas entre ruas e ruelas onde
comprámos numa banca um pão de cuscus avec la fromage e um pão de pizza, fininho e com sabor a cebola (pela módica quantia de 4 dh (40 cêntimos). O sol pôs-se tão rapidamente que mesmo perdidos houve tempo para desfrutar de uma imagem esteticamente tão perfeita como esta...
Seguiu-se a viagem para norte até Chefchaouen com paragem em Moulay Idrissi, uma
pequenina vila já no Rif, perto das turísticas ruínas da antiga povoação romana de
Volubilis que também serviu os cartagineses em tempos ainda mais idos. Passar esta cadeia
montanhosa do norte de África é uma experiência particularmente intensa que cada qual
sentirá de forma muito individual. Eu sinto-me sempre muito insignificante. Apesar das
construções não serem tão "espectaculares" como a arquitectura das aldeias da outra
cadeia montanhosa mais a sul (o Atlas), a vastidão solitária e o recorte da paisagem,
muito pouco humanizada, daria para as mais variadas divagações filosóficas. Pelo caminho
e encarrapitada no topo da mota (qual imagem do "Titanic") lá ia eu a observar alguns
aspectos quotidianos dos lugares que para nós ocidentais nos chocam culturalmente hoje.
Agora, recuando 70 anos, Portugal não deveria ser tão diferente.
Um exemplo. O trabalho
infantil. Mas pode-se usar este conceito numa realidade tão pobre e tão diferente? Vemos
crianças literalmente vergadas sob o peso das cargas que transportam. Vemo-las à beira
das estradas, a caminho de nenhures sob um calor intenso. Vemos crianças a trabalhar nos
restaurantes; a tomarem conta de bancas; a servir chá; a lavar o chão; a tomar conta de
outras crianças, a trabalhar no campo... E por aí adiante. Mas, curioso, vemos muitas
crianças. Tantas, tantas que até constatamos mentalmente esse facto. E por comparação
percebemos que, na Europa, existem poucas. Por outro lado, vemos uma notória ausência de
velhos. Não há tantos como cá. Sente-se a falta. Não estão lá. É um facto que
culturalmente nos países menos desenvolvidos há uma maior taxa de natalidade e uma grande taxa de mortalidade. É certo que cada família marroquina tem em média quatro filhos. E eu
constatei isso, pois de cada vez que conversávamos com alguém, lá eu fazia a pergunta de
quantos filhos e irmãos tinha. O conceito de infância é diferente, pois os filhos têm
obrigação moral de cuidar dos pais desde sempre. O respeito filial passa por isso:
contribuir para o agregado familiar. Trabalhar no negócio da família, não é trabalho, é a
evolução natural das coisas. Disseram-nos, contudo, que o reinado do Hassan II está a
primar por uma revolução de mentalidades lenta, mas muito importante, nomeadamente no que ao valor social da educação e ao papel entre géneros diz respeito: o facto do próprio rei
se deixar fotografar em atitudes muito corriqueiras com o filho ao colo, a ler com o
filho, a brincar com os filhos, a praticar desporto com os filhos, abraçado à sua esposa
tem contribuído para a naturalização de um certo liberalismo na relação parental, nas
demonstrações de afecto e nas relações afectivas em geral. Pessoalmente, a grande mais
valia dos marroquinos é essa predisposição natural para respeitar a diferença. Daí que
nunca me tenha sentido ostracizada por ser turista e vestir um calçanito mais curto ou um
cai-cai em dias de calor extremo e nem por fumar nas esplanadas ocupadas só por homens e onde não cai mesmo nada bem se sentar uma autóctone. Essa distinção natural, talvez um pouco paternalista, que racionaliza a diferença torna as relações sociais entre turistas
e locais muito mais fáceis, menos desconfiadas e até mesmo extremamente agradáveis e
interessantes, do género "?tadinhos, estão a morrer de calor e não bebem o copo de água
que lhes dei, continuam a insistir que querem uma água mineral engarrafada... vê-se logo
que não são de cá".
Marrocos está em franco processo de investimento e abertura turística; nomeadamente
enquanto destino seguro (que é), barato (muito, muito) e com oferta cultural (que a há).
Esta realidade tem a vantagem de incutir uma certa racionalização que normaliza e esbate
a "diferença" cultural entre eles e os outros, mas, por outro lado, incrementa um aspecto
intrínseco da sua cultura: a predisposição para negociar e as próprias estratégias
económicas. Em Marrocos tudo se vende e troca: roupa usada, cartuchinhos de grão cozido,
água, bolibilim (bolas de Berlim, por todo o lado), papel higiénico à unidade e
guardanapos também... Quanto mais para Norte estamos, mais nos sentimos uns turistas ou viajantes-objecto.
Em Chefchaouen senti-me como uma máquina de fazer dinheiro: em todo o
lado nos abordam oferecendo haxixe, comida, tapetes, cortinados. Mais, abusam (como
noutro sítio qualquer que sobreviva do turismo e dos turistas) bastante. Um exemplo: é
uma prática comum existir em toda e qualquer rua um gardian; um homem ou um rapaz que
toma conta dos carros ou das motas. Da última vez que lá estivemos, nós dávamos aquilo
que queríamos; agora e porque as câmaras municipais lá do país aderiram a uma política de regulamentação sobre esta prática, há preço fixo, pois agora os gardians têm de dar uma
percentagem à sua edilidade. Ora, em todos os sítios em que estivemos o preço era 20 dh
(menos de 2 euros); chegados a Chefchaouen pede-nos o gardian da rua do nosso hotel 50
dh. Recusámos, por princípio. Dizia o homem de trinta anos "c?est une moto; n?est pas un
auto!". Aquilo foi uma negociação longa que encerrou nos 30 dh, após a pergunta se estávamos a chegar ou a partir. Ah, pois é! O norte marroquino funciona assim: pensam que toda a chega que pára lá na terra é um turista desavisado e toca de aumentar o preçário todo à maluca. Isto funciona, como nos explicou o rapaz do hotel, na maior parte das vezes, mas depois há sempre uns estrangeiros que chegam já do norte e que se rebelam. Foi o nosso caso. Quando lhe dissemos que em Meknes os gardians não eram tão gananciosos, desceu o preço. Isto irrita-me.
(Chefchaouen)
(de azul a condizer com as casitas)
E nesta leva entra também o facto de pressuporem, principalmente nas cidades
perto da fronteira, que os estrangeiros vão a Marrocos para comprar haxixe, ponto final.
Daí que em Chefchaouen, conhecida como a cidade branca devido à pintura das suas casas e detentora de uma kasba (fortaleza) que foi o centro da primeira jihad (resistência)
contra a ocupação portuguesa e espanhola nos séculos XV e XVI, muito interessante e
relativamente bem preservada, eu não tenha conseguido apreciar quase nada, pois esta
atitude mercantilista em excesso irritou-me. Mesmo assim ainda ensinei o Radouan, a
criança que trabalhava num restaurante lá da Praça central e que estava sempre à porta a
chamar os clientes, a dizer em português "Estás bem ou vais para Belém", só para ajudar à
diversificação do seu parco vocabulário português que se resumia a uma expressão ensinada por outro turista, "És fixe ou és de Peniche?" (o que é sempre uma motivação para entrarmos no seu restaurante).
E havia muito, muito mais para contar, mas o melhor é irem até lá e cheirarem, olharem, provarem e aperceberem-se que o mundo é enorme, mas as pessoas são intrinsecamente muito semelhantes. Ficam memórias soltas, como a do dromedário teimoso que não queria levantar-se com ninguém lá sentado em cima de si ou a correria do empregado para nos arranjar uma fanta para beber (foi ao supermercado buscar) ou ainda a discussão entre uma mulher berbére e o rapaz que a empurrou com o carrinho de mão cheio de melões... enfim, pormenores...