Emergi lá dos píncaros dos prédios estreitos.
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Lá onde as águas furtadas têm janelas pequenas e respiramos o cheirinho do papel amarelecido: os últimos pisos onde se localizam os arquivos do nosso país!
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O facto de, só por si, eu não começar o post com emergi “lá de baixo” é motivo de congratulação colectiva: em Portugal tarde se percebeu que um arquivo numa cave era sinónimo de “não me queimas agora, mas estás-me a arrumar com os dias contados” (isto era o pensamento do papel).
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Acometida de uma ligeira dor lombar e uma pequena crise alérgica, resquícios da minha semana onde, curvadinha sob dossiês, caixas e calhamaços encadernados onde jaziam jornais, revistas, documentação enviada e recebida, postais, fotografias, negativos e positivos e outros, ia lendo, sorrindo, escrevinhando, espirrando e limpando o nariz. E mesmo assim hoje, após ingestão de alguns anti-histamínicos, ainda tenho a sensação de terem restado uns quantos ácaros que se passeiam alegremente pelo interior das minhas vias respiratórias e acamparam para o fim de semana de Carnaval no meu nariz.
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Como o objecto da pesquisa era um acontecimento de simbologia maior na vida pública portuguesa de meados do século XX, lá andei a tropeçar, entre outras coisas, em discursos do, então, Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira. Aguçou-me o interesse histórico essa figura poderosa cujos princípios político-teológicos se tornaram omnipresentes na construção ideológica do Estado Novo e, se, por um lado, a ideia de “nação” tinha na figura patriarcal de Salazar, a imagem, um dos seus bracinhos, foi, sem dúvida, o Cardeal.
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Ora bem, dizem-me os meus pares, mais velhos que eu, que o homem foi um dos piores filhos de sua mãe de todos os tempos. Pois. Percebo. Academicamente percebo tudo muito bem. Agora, eu nasci no ano em que se votou pela primeira vez em Portugal em 50 anos (sem manipulação de votos, com pluripartidarismo e tudo). Sei lá eu experimentar o que é viver em ditadura! Sei lá eu o que é crescer numa aldeia onde o pároco debitava o que o cardeal pensava e fazia o que o cardeal mandava fazer!
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Desculpem lá, se me atrevo a dizer que era inteligente e que, de acordo com o que tinha delineado para a Igreja, a sua acção foi coerente. Desculpem lá, se a figura histórica do homem me desperta o interesse, afinal conseguiu driblar a Lei da Separação entre o Estado e a Igreja, alcançada com a República, e mais, preservou muito bem as amizades dos tempos de juventude cristã, ainda conseguiu restaurar os antigos privilégios clericais e, à força de se manter sempre muito promiscuamente colado ao regime, ainda lhe emprestou uma arma de destruição maciça: a religião. E ainda houve mais... após quase quarenta anos a “fazer forcinha” para convencer o Estado de que o ensino podia ser partilhado com a Igreja, lá conseguiu para o fim, fundar a Universidade Católica.
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Assim, Portugal embruteceu, empobreceu e foi guerrear, mas sempre com muita fé e a partilhar da religião oficial da nação, a católica e mais nenhuma. Religião católica, por um lado e União Nacional, por outro, Cerejeira e Salazar e 50 anos de miséria, analfabetismo e pulverização das mentes pensantes contrárias. Eu sei. Era mau como as cobras? Ok. Mas para se perceber a história recente do país, não convém nada apagar da história o homem. Podíamos olhá-lo como ao Marquês de Pombal, com objectividade e sentido historiográfico crítico, mas ainda passou pouco tempo, também sei.
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Se serve de consolo ainda viveu para ver os movimentos progressistas católicos e a queda do regime. Morreu três anos depois da revolução de Abril. Ainda pasmado... digo eu.
De
jts a 1 de Fevereiro de 2008 às 22:43
Pois é, pois é... trabalhar dentro dessa panóplia de papel envelhecido, é obra. Eu seu o que isso é, porque já fui bibliotecário e muitas vezes chafordava em toneladas de papel velho até às orelhas. Mas, dizes que quando sou no Rádio Clube Português a música "E depois do Adeus", que serviu de "senha" para avançar a revolução, ainda não tinhas nascido. Foi pena... terias assistido a uma coisa maravilhosa. Os militares invadiram a capital, vindos de Santarém, com o Capitão Salgueiro Maia, a comandar as tropas, sem medo e destemido, em direcção ao quartel do Carmo, onde se encontrava a ralé salazarista encurralada. Na rua o povo, dava vivas à revolução, colocando cravos nos canos das espingardas. Que lindo...25 de Abril de 1 974!!!
Mas lindo lindo, foi só esse dia, porque logo a seguir, surgiram as complicações que ainda hoje se mantêm.
oh, minha querida, tenho muitas saudades desse dia... que foi pequeno demais... e acabou muito depressa. Da revolução já não existe nem um cravo, nem um patriota, nem um político, nem coisa nenhuma. "O povo unido, jamais será vencido"! Mas foi. Vencido várias vezes. Pelos oportunistas que grassam na nossa praça política, que como autênticas sanguessugas, chupam o sangue dos portugueses.
Desculpa a franqueza. Tu não tens culpa do que se passa na nossa sociedade, quanto muito, és como eu, uma vítima.
Um beijo, JTS
Caro jts, a forma bonita e profunda como descreve o dia 25 de Abril de 74 é, em tudo, semelhante às estórias contadas por muitos familiares e amigos dessa geração. Realmente tenho muita pena que o que tenha restado aos nascidos no rescaldo, à excepção da educação, tenha sido muito pouco. Deve ter falhado tudo, desde a transmissão dos valores da liberdade e cidadania aos princípios da participação na vida pública e política pela associação ou simplesmente reivindicando. Parece que após a revolução, os que a viveram entraram em letargia progressiva e as gerações seguintes, salvo algumas excepções, nem percebem. A nossa classe política é o auto-retrato dos portugueses hoje. Bjs
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