Não consigo deixar de me espantar com a plácida rapidez com que todos nós, humanos, nos adaptamos às mudanças, aparentemente, ténues da sociedade que conhecemos.
Como introdução, uma frase da minha progenitora, a propósito do comboio da Ponte 25 de Abril: “bem… se o meu pai voltasse ao mundo, aqui e agora, nem acreditava na transformação que isto teve!”. Acreditar, até acreditava, pois se o comboio é uma evidência, bastar-lhe-ia entrar e passar a ponte na ferrovia para constatar que sim, um comboio andava na ponte. Mas a ideia não era essa. A ideia principal era a impossibilidade de ser inteligível para alguém, arredado deste mundo há décadas, as transformações estruturais da sociedade e, dentro dela, as novas nuances de códigos, sinaléticas, significados e propósitos que radicalmente haviam alterado o seu modo de ver e existir na parte do mundo que era sua por direito: o seu quotidiano.
A mudança ocorre e é inevitável, mas reveste-se de uma característica conceptual única: passa por nós e não a conseguimos intuir como uma mudança estrutural; como o fim de algo ou a sua incondicional substituição.
Quando eu era mesmo muito pequena e acompanhava os meus pais ao banco, o único da nossa terra, o Banco Nacional Ultramarino, nunca imaginei sequer que o ritual que se seguia ao momento de entrar por aquela porta maciça envidraçada alguma vez seria diferente. Ir ao banco era aquilo: entrar, pedir umas fichinhas numeradas que davam aos clientes e siginificavam os primórdios da impessoalidade do sector terciário e esperar de pé, entre uma multidão que enchia todo o espaço, que chamassem, alto e a bom som, o nosso número. Essas fichas plásticas, redondas e verdes, cujo número ditava o tempo da espera para o atendimento, pareciam-me tão reais e constantes na vida como o facto da Barbie Ginástica ser a mais desenxabida de todas: nada faria mudar isso. E enquanto aguardavam, algumas pessoas fumavam perto de uns cinzeiros cromados e limpíssimos, outras estavam sentadas em sofás fofos e de pele, numa época em que sofá fofo e de pele era, para mim, sinónimo de local público, banco ou consultório médico, pois que o sofá lá de casa era duro, verde e tentava deficientemente imitar veludo cote lã. As crianças aguardavam, mais ou menos, pacientemente, desenhando nos impressos duplos ou triplos, já não sei, que serviam para depósitos e afins. E depois o senhor do balcão gritava o número e, se fosse o nosso, era espectacular pois eu tinha direito a ser sentada no balcão e o simpático bancário ainda me dava mais impressos e, às vezes, uma esferográfica. Depois vieram os cartões multibanco e as caixas atm, saíram os sofás e ostracizaram-se os cinzeiros; apareceram cada vez mais bancos e reduziram-se os simpáticos balconistas bancários e nunca mais nada foi igual até ao dia em que se deixou de ir ao banco.
Esta minha reminiscência, prosaica e subjectiva, serve para exemplificar a constatação de que a mudança, sendo um conceito, só existe como facto registado no nosso cérebro, anos após os seus efeitos se terem feito sentir na dinâmica da nossa vida quotidiana. Na distância do tempo que apela à memória; depois do antes e antes do depois, nós identificamos alterações e só muito tempo após concebemos que essas variações, aparentemente tão inócuas, que se deixavam perceber pontualmente em algo aparentemente tão comezinho como as nossas rotinas, todas juntas representavam o fim de um estilo de vida e a imposição de um novo. No meio, nós só constatamos como as coisas mudam, nunca a mudança.
Ocorreu-me esta ideia perante a constatação de um idoso (ou sénior, como agora sociologicamente fica bem designar) sobre a impossibilidade actual de se deslocar a sítios públicos para resolver problemas práticos como sempre fez. Hoje não podemos assentar praça num balcão da EDP, só existe call-center. Já não se vai ao banco para nada: tem-se o nº verde para o atendimento directo ou on-line. Já não existem passes sociais: aqui existe o sete colinas, noutros sítios o andante, recarregáveis numas máquinas computorizadas. Já não perguntamos informações: as pessoas foram substituídas por um painel electrónico inteligente que, mediunicamente, nos responde às questões que elaboramos mentalmente. Fazemos compras on-line e pagamos sem mexer em dinheiro. Mesmo se formos ao hipermercado, podemos optar por registar as nossas próprias compras, as caixas ou balconistas são profissões em extinção, tal como já o foram os calafates e os ferreiros. Na rua ou noutro espaço semi-privado ou semi-público, como uma estação de comboios, temos toda a informação que nos permite a utilização codificada e sabemos, quase de forma automática, descodificá-la: sabemos os sinais de trânsito, a leitura a extrair de amontoados de setas e diagramas, bonecos estilizados e palavras curtas directivas; sabemos as cores da reciclagem e corremos para pagar o parquímetro como se isso fosse a coisa mais inata de todas.
Ora se pararmos a falar com o tal idoso/sénior percebemos que se move quase tão bem como um jovem adulto por entre os novos códigos e linguagens da pós-modernidade. Pode falhar-lhe a parte do acesso on-line ao banco ou às compras; mas não lhe falha a apreensão e utilização de todas as outras, telemóvel incluído.
A bem dizer hoje já nem se devia falar de sector terciário; devíamos adequar a noção, na senda da liberalização económica selvagem que reformulou conceitos como o trabalho e vidas como as dos desempregados que aumentam, aos efeitos globais e usar a noção, há muito proposta, de sector tecnológico para pensarmos melhor as influências e as dinâmicas propiciadas pela emergência de novas formas de serviços e comércio na órbita das novas tecnologias: uma espécie de terciário, mas sem pessoas, cuja interacção se elabora na relação entre a distância relativa e a proximidade absoluta proporcionada pelas novas formas de comunicação global.
Esta questão não me tira o sono. As formas e os quotidianos utilitários mudam. Vão sempre existir pessoas. Essa é uma ideia reconfortante. E de entre essas pessoas, algumas descobrirão outros locais públicos e reinventarão, pelo uso, o conceito de espaço. De uma forma quase parola faz-me pena a não valorização das pequenas-grandes-insignificâncias dos dias; não existir hoje reverência aos pequenos gestos quotidianos; deixar extinguir aquela sensação de pertença com a senhora balconista do serviço x ou y. Torna-me ansiosa pensar que a D. Jaquina da mercearia da rua atrás da minha possa fechar por falta de competitividade e não haver ninguém que substitua o facto de me escolherem, apenas por simpatia, as bolas de pão melhor cozidas. Apesar de saber que a mudança se anuncia só com qualidades: maior racionalização do tempo; atendimento mais eficaz; impessoalidade padronizada como sinónimo de competência, faz-me pena perder a parte humanamente acessória de tudo isso e não existir, para mim, argumento socio-económico que a consiga algum dia substituir.